segunda-feira, 19 de novembro de 2012

A Menina do Fundo


Geralmente a gente chora quando uma pessoa próxima parte "dessa para outra". Mas e quando você descobre a morte de alguém que não vê há anos, qual deve ser a reação?
Quando recebi a notícia, meu maior medo era enfrentar os rostos conhecidos que eu abandonara anos antes. Me surpreendi ao perceber que eu era a única a velar aquele corpo tão familiar. Ou seriam dois corpos?

Eu segurava a mão esquerda de minha avó, que hoje não se movimenta por consequência de um acidente doméstico. Eram sete da manhã e o céu estava nublado, o cheiro do ar nos avisava que a chuva estava por vir. Eu ainda amo aquele cheiro.
Os portões do colégio se abriram e os professores nos desejavam boa sorte em mais um ano do fundamental. Entrei na sala e a vi encostada na parede do fundo. Eu sentei na segunda carteira, pois adorava estar próxima da professora, mas era tímida demais para ser a "primeira da classe". Não demorou muito até que eu percebesse alguém se aproximando. A menina do fundo se sentou ao meu lado e sorriu.

Jane era quase dois anos mais velha que eu. Entrara tarde no colégio. Passamos oito anos juntas. Em alguns deles éramos melhores amigas, em outros éramos hora amigas hora inimigas. Mas ela nunca deixou de ser importante.
Meus pais trabalhavam bastante e eu nunca tive irmãos. Jane me divertia e compartilhava dos mesmos gostos que eu. Lembro dela quando ouço Colbie Cailat, porque certo dia ela comparou as composições de Colbie com música de comercial de sabão.

Com 14 anos passamos a agir como adultas. Eu realmente me sentia mais madura que as demais alunas da classe, mal sabia que era, na realidade, a mais coitada de todas. Foi quando conheci aquele fantasma que costuma assombrar as pré-adolescentes tímidas. A popularidade. De repente passei a encontrar desconhecidos na rua, que sabiam meu nome e elogiavam meu cabelo. Jane chamava a atenção de qualquer rapaz, de qualquer idade. Sorria com simpatia até para os estranhos que encontrava no caminho do colégio.
Esse é o segredo da popularidade, mas se você for uma garota esperta não vai querer ser popular.

Eu sempre tive vontade de participar de festas em beira de piscina, sempre quis tomar vodca (sem fazer cara feia) num daqueles copos coloridos de plástico. Resumindo, eu sempre quis participar das festas de filmes americanos. O máximo que consegui foi tomar coca-cola direto da garrafa numa festa de garagem. Anida assim, eu gostava do meu falso "poder", gostava de ser convidada para lugares que minha mãe me proibia de frequentar. Na verdade, até pular a janela do quarto durante a madrugada parecia bom. Eu sempre gostei de adrenalina, de correr riscos. Mas odiava quando minha mãe ficava esperando ao lado da janela.

Essas festas serviam de escape para Jane, que fazia de tudo para sair quando a mãe chegava bêbada em casa. Se isso acontecesse e não tivesse uma festa qualquer, ela ligava pedindo para dormir em minha casa. Na verdade, esse capítulo se repetia quase todas as noites.
Minha mãe não concordava com nossa amizade. Perdi a conta de quantas vezes brigamos por isso. E em todas elas mamãe repetia "essa garota ainda vai te arranjar encrencas". Aprendam, nossas mães têm sempre razão.

Percebi que as coisas estavam mudando quando Jane e eu tivemos uma conversa por telefone, que jamais esqueci.
- Espero que esteja pronta. A festa começou há uma hora.
- Jane, acho que não vou hoje. Estou sentindo dores estranhas e ânsia.
- Desconfia do que seja?
- Não sei. Ressaca, talvez?
- Cale a boca! Você nem sabe o que é isso.
Não foi só o "Cale a boca!". Ela nunca usou aquele tom antes e nunca desligou o telefone na minha cara, como fez naquele dia.

Sempre soube que Jane bebia em festas e as vezes até fora delas. Eu não conseguia. Preferia não beber ao sentir minha garganta queimar e fazer caretas perto de gente que me considerava adulta. Mas foi numa das nossas madrugadas que percebi como a bebida não era o mais importante.
Jane enviou um SMS avisando que já estava na tal festa. Logo que cheguei fui procurá-la e avistei seu cabelo loiro no cano escuro de uma sala, com dois rapazes à sua volta. Jane se virou e pareceu assustada ao me ver ali. Quando se aproximou eu entendi tudo.
- Da próxima vez que quiser cheirar, seja mais discreta. Limpe o nariz!
Saí as pressas enquanto ouvia sua voz cada vez mais longe. Até a maneira de chamar meu nome havia mudado.
Eu pegava no pé quando ela bebia muito, com drogas eu seria ainda mais crítica. E não me venha com essa de que amigas verdadeiras apoiam até os erros umas das outras. Ela se afogava aos poucos e eu estava me cansando de tentar salvá-la.
Percebi que minha raiva era maior que a soma da tristeza com a decepção, então decidi evitá-la até que me sentisse confortável para conversarmos, mas isso nunca aconteceu.

Ao contrário de Jane, eu não me apaixonava por qualquer um que encontrasse na rua. Minha vida amorosa no ensino fundamental envolveu uma única pessoa: Tony. Foi o primeiro garoto que beijei. E uma das piores traições que já sofri.

Jane e eu voltamos a nos falar, mas não como antes. Ela me evitava o suficiente para não termos chance de conversar sobre seu envolvimento com drogas. Ou era isso o que eu pensava.
Numa das saídas noturnas ela disse que ficaria em casa, pois, estava doente. Até fingiu uma tosse pelo telefone. Resolvi que precisava sair e iria mesmo sem ela.
Não bastou mentir e ir à festa com um grupo de garotas que me odiava. Ela fez o trabalho completo ao beijar o único garoto no qual eu pensava nos últimos dois anos.
Uma semana mais tarde surgiram boatos de que os dois foram vistos entrando na casa dele enquanto seus pais viajavam.

Não sei como minha mãe percebeu. Na verdade, nem sei exatamente o quê ela percebeu. Mas me obrigou a terminar os estudos em outro colégio. Foi onde um nerd se apaixonou por mim e eu, por um garoto que se tornou meu melhor amigo. Mas nunca fomos nada além disso.
Naquele lugar eu era a nova Jane, não precisava seguir ninguém porque com o tempo, todos passaram a me seguir. Eu desejava ser uma versão menos perversa dela. Ou talvez uma mais cruel de mim mesma.

Entrei na faculdade. Aprendi a passar batom sem sujar os dentes e andar de salto sem tropeçar. Comprei meu próprio apartamento, mas deixei parte das roupas na casa dos meus pais, pois tenho medo de tempestades e sempre corria para lá quando previam alguma. Fora isso, eu não dependia de ninguém além de mim mesma.
A última notícia que tive de Jane, era que estava na terceira semana de gravidez e não sabia quem era o pai da criança; Fui buscar umas roupas na casa antiga e minha mãe contou que aquela não era a primeira gravidez. Tudo (tudo = vizinhos) indica que Jane fizera um aborto há menos de um ano.

Durante semanas me peguei pensando nela enquanto dirigia. Descobri que gostaria de vê-la com a barriga de nove meses e que desejava observar de perto o ser que estava prestes a gerar. Essa necessidade era o que eu menos precisava, depois de tanto esforço para me virar sozinha. E no meio de possibilidades e arrependimentos, o telefone tocou. Minha mãe costumava ligar no trabalho, então meu coração pulou para avisar que más notícias estavam a caminho...
- Foram dois tiros. Um na cabeça e outro na barriga. Ela estava voltando para casa depois de vir aqui. - Ela parecia realmente abalada e chorava aos soluços como uma criança. Quase me cansei de perguntar o motivo pelo qual Jane fora "nos" visitar, até que minha mãe conseguiu tomar fôlego para falar.
- Ela veio te procurar. Disse que estava orgulhosa da pessoa que você se tornou. Quando eu disse que você não estava, pediu que te dissesse que ela se arrependia de tudo.
- Porque não me ligou? Eu teria ido!
- Não sei o que aconteceu, mas sei que ela te magoou. Essa menina te fez mal, ela mesma comprovou isso ao pedir desculpas.
Descobri que Jane estava vivendo sozinha e de favor. Meia hora depois da ligação, minha mãe enviou um torpedo com o endereço de onde o corpo seria velado, os números se misturavam com palavras e símbolos. Imaginei seus dedos tremendo enquanto discava.

Ir àquele velório me obrigaria a encontrar pessoa que há muito tempo eu não via. Pessoas que me empenhava em evitar. Meu ex-namorado, as garotas que me odiavam, os caras que forneciam drogas à Jane. Me perguntei o quanto eu queria aquilo e descobri que merecíamos um adeus, ainda que medíocre e indiscreto. Foram oito anos me dedicando a alguém que não era eu. Oito anos de alegrias e decepções. Ela foi me procurar então provavelmente gostaria que eu estivesse lá para me despedir.

Estacionei o carro numa rua vazia atrás da pequena capela. Na entrada, um jardim colorido e alegre. Nem parecia que alguém tinha morrido! Ou talvez os pássaros fossem tão perversos a ponto de comemorar com cantos a eterna partida de alguém.
Me aproximei da entrada e consegui enxergar bancos encostados nas paredes. Subi os degraus e ao adentrar, ouvi o eco do barulho de meus sapatos conforme me aproximava. Olhei para os dois lados e não encontrei ninguém. Uma foto de Jane estava perto do caixão e eu demorei para reconhecê-la. Os cabelos estavam mais longos e o nariz mais fino. A pele branca continuava igual, mas ela parecia ainda mais adulta (pensei que isso não fosse possível). Apesar do sorrido, na foto o olhar estava triste. Ela não conseguia esconder os problemas. Pelo menos não de mim.
- Boa tarde! - Era um senhor baixinho usando uma batina.
- Olá! Onde estão as outras pessoas?
- Existem outras? A senhorita é a única até agora. Me informaram que a polícia está investigando.

Foi quando me perguntei: quem e porquê? Não sei como era a vida de Jane depois que me afastei. Pode ter sido um traficante cobrando dívidas altas demais para serem pagas. Talvez o pai da criança por não querer assumir tamanha responsabilidade... Motivo fraco! Mas quem sabe?
Fui tomada por um sentimento de perda, porque mesmo tendo me distanciado há anos, eu poderia tê-la recuperado. Agora não mais.

A ironia de toda essa história era o fato de que Jane não me procurou antes porque eu não fazia falta. Ela tinha uma multidão ao seu redor e a atenção que tanto queria.
Hoje, quando esperei encontrar ao menos uma porção significante de toda aquela multidão, ouvi apenas o barulho dos meus passos. Acho que no final de tudo, as pessoas que continuaram por perto foram as que sobraram para ela magoar.
Talvez Jane tenha feito estragos ainda maiores depois que fui embora. É uma boa explicação para que estejamos sozinhos nessa capela. Eu, ela e o bebê.

Olhei a foto por tantas horas que me senti incapaz de esquecê-la. Guardei suas feições e decidi que jamais as esqueceria. O padre reapareceu quando começava a escurecer. Hora de ir para casa.
Ao descer as escadas da capela, fui barrada por um policial que perguntou meu nome.
- Melissa.
- A senhorita conhece este homem?
Eu olhei a imagem por longos minutos, até perceber uma cicatriz próximo ao olho esquerdo do rapaz na foto.
- Tony. Foi meu namorado na adolescência e me trocou por minha melhor amiga. Já pode me chamar de perdedora! - Ainda sério ele respondeu.
- Este homem é responsável pelo assassinato de Jane. A senhorita pode me acompanhar e dizer o que sabe?

E aquela era eu mais uma vez ajudando Jane, mesmo depois da morte!
Registros afirmam que eles namoravam há vários anos, até Tony descobrir a gravidez e querer se vingar da traição. A criança não era dele porque Tony descobrira há alguns meses que era estéril.

24 comentários:

  1. Aiin, me emocionei com esse texto!
    Tem selinho pra ti lá no meu blog!!
    Bjxx
    http://cenariumfashion.blogspot.com.br

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  2. Uma frase: MEU DEUS DO CÉU! Talento é pouco para descrever XD
    www.analogicbea.blogspot.com

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  3. Grande narrativas o/ Não sei se é auto-biográfica, mas isso não muda o fato de como tu te expressas bem. Valeu a pena perder tais minutos aqui, lendo. Bacana teu blog. Acho que superar perdas devia ser lição de berço, de nascença. E mesmo com todas as forças que adquirimos com o tempo, esta é uma falha na nossa resistência ainda. O adeus.


    Adoraria que me seguisse também e comentasse meu último post (mesmo não tendo lido os anteriores :B )

    diademegalomania.blogspot.com

    Agradecido

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    1. Fico muito feliz que tenha gostado. Esse texto foi um desafio. Não costumo escrever sobre esse tipo de texto, mas parece que deu certo! <3

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  4. Marina, simplesmente perfeito! Sério, muito bem escrito e com um desfecho que eu não imaginei. Espero que faça parte de um futuro livro seu, dou todo o apoio!
    Beijinhos

    hiperbolismos.blogspot.com

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    1. Nossa! Eu nem me imagino escrevendo um livro, mas na realidade seria ótimo e muito interessante. Obrigada, Amanda. Fiquei muito feliz com seu comentário! *_*

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  5. Velho, na boa! Que horror D:
    Que historia mais triste T.T Acredite se quiser, mais eu li tudo e tenho que dizer que isso acontece muito por ae... A nossa mãe nos alertando, a gente nem ai, até que percebe como realmente a nossa amiga é, e depois de nos distanciar percebemos que não conhecíamos a tal "amiga" de verdade.
    Mas na boa, achei mancada a Melissa não ter ficado do lado da Jane. Por mais que ela estivesse estragando a sua vida e de todos ao redor, acho que amiga de verdade não é aquela que apoia as coisas erradas mas aquela que vê o nosso melhor e tenta abrir os nossos olhos para o mundo.

    Enfim, adorei o conto.

    http://rascunhosdasuuka.com/

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    1. Eu já não penso dessa forma! Sei lá... Acho que quando você tenta ajudar uma pessoa que não quer ser ajudada, o mais inteligente a se fazer é cair fora, antes que você se afogue junto com ela ou se machuque ainda mais, como no caso da Melissa.
      De qualquer forma, fiquei feliz por você ter lido até o final. É um texto grande e bem diferente do que costumo escrever. Muito bom saber que leitoras antigas como você, gostaram! :)

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  6. SOCORRO! Que texto SENSACIONAL! Meu Deus! A Jane é uma típica garota problemática de hoje em dia, e quem diria que Tony pudesse fazer isso, hein? Maravilhoso!

    Gata, passei aqui também para dizer que tem post novinho no meu blog. Confere lá *-*

    Beijos!

    sugar-dance . org ♥

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    1. Ai, como é bom ler seu comentário! *_* Adoro seus posts e sei que você tem opiniões feitas, por isso fico feliz de saber que o texto te satisfez. Já comentei no seu novo post. ;)

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  7. Caramba! Que história louca! Jamais esperaria que o final fosse dessa forma. =S

    Baci!

    Cowgirls from Hell

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  8. Nossa, é pra se pensar...
    Hoje em dia muitas pessoas vivem assim sem consequência.
    Que Triste o fim da moça, porém os caminhos escolhidos levam ao destino futuro.

    Gostei do texto flor.

    Beijos
    felicidade-essencial.blogspot.com.br

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    1. Concordo com você, Paula! Que bom que leu até o final. :)

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  9. Caramba!! Não sabia que você escrevia tão bem... Ficou incrível.
    Muito criativo e interessante.

    http://4demarco.blogspot.com.br

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    1. Poxa, Ká. Obrigada! Adoro que leitoras antigas como você, façam comentários positivos como esse. Significa que estão gostando do conteúdo! :)

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  10. Muito bom. Você que escreveu? Ficou excelente, adorei a leitura.

    Beijos, feelfirstandthinklater.blogspot.com

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  11. Foi um dos textos mais lindos que já li, Marina. Eu queria uma continuação da história, mas sei que não há. Por que não escreve um livro, com base nessa história? Sério, ficou muito bom! Parabéns mesmo. Nunca uma leitura me prendeu assim =)
    Beijos!

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    1. Nossaaaa, você é a segunda que cogita a ideia do livro! Meu ego vai aumentar com esses comentários. Não tem continuação, mas pretendo fazer outros nesse estilo, ok? ;)

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  12. Um ótimo texto vc escreve muito bem começo, meio e fim!
    Parabéns.

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