quarta-feira, 28 de março de 2012

Olfato


Cheguei em casa no final da tarde daquela quarta-feira - o pior dia da semana, na minha opinião. Continuava tentando enxergar algo de bom no aconchego do meu apartamento, pequeno mas seguro; o dia não fora pior do que eu esperava, mas ainda assim foi péssimo.
Quando me preparava para tirar as botas e sentir as carícias do meu tapete felpudo, mamãe ligou:
- Eu avisei ontem, como pode ser tão esquecida?
- Mãe, eu não esqueci. Só acho minha presença inconveniente e desnecessária!
- Ele não virá! Não falava com o pai há anos. Apareça por educação, não precisa ficar muito.
- Chego em meia hora!
Minha mãe sempre me ganhava com suas lições de moral. Era o velório de Paul Stewart, vizinho dos meus pais e pai de John Stewart - meu primeiro e melhor namorado.
Tínhamos nosso dezesseis anos quando tudo começou; tínhamos nossos dezenove anos quando tudo acabou. Nossa relação foi esfriando com o tempo, mas por mais que fosse quase impossível ouvir um "Eu te amo" saindo da boca de John, em todos os seus gestos ele provava seu amor, talvez por isso eu continuasse com o estômago agitado por ele, como no primeiro dia em que o vi.
Perto dos vinte anos, ambos recebemos propostas de trabalho em cidades distantes; John me contou detalhes sobre o assunto, e uma semana depois foi a minha vez de avisá-lo sobre as minhas oportunidades, mas não o fiz.
Andávamos agindo de maneira estranha, e algo em meu interior alertou-me; eu sabia que ele iria embora sem ao menos se importar com a futura dificuldade que teríamos de enfrentar para manter contato. E a partir daí, as coisas aconteceram de forma muito rápida. Fiz minhas malas e em menos de uma semana me instalei no novo apartamento, bem longe de John e da minha família.
Nas primeiras cinco horas sozinha, não parei de roer as unhas me obrigando a não ligar, e quando pensei em ceder, o telefone tocou, "Ele já ligou doze vezes, tive que contar", mamãe parecia realmente frustrada. Agora que ele sabia do meu novo rumo, jamais no encontraríamos de novo.
Descobri por minha mãe que John decidiu viajar também, isso complicou a relação com seu pai, que se dizia velho demais para cuidar sozinho da esposa, sendo John o responsável por ajudá-lo nessa "tarefa".
Dois anos depois voltei para a cidade, comprei um apartamento próximo da casa de meus pais, e toquei a vida... com muito sucesso até aquela noite.
Atravessei os portões brancos e passei por enormes colunas cobertas por flores amarelas; cumprimentei a rescém-viúva e corri para perto de meu pai.
- Onde está mamãe?
- Foi ao banheiro. Vá procurá-la, acho que é naquela segunda porta.
Meus pulsos gritaram quando empurrei a porta pesada, aquilo não era um banheiro; sala de descanso seria o nome mais apropriado. O tapete azul marinho cobria o chão quase por completo, os sofás sustentavam almofadas beges e aparentemente muito fofas. Havia uma estante embutida cobrindo a maior parte da parede onde ficava a porta, livros em quantidades absurdas me hipnotizaram; literatura nacional, auto-ajuda - provavelmente para os familiares dos falecidos - e os meus favoritos: Romance - já que eu não podia ter um romance na vida real, tinha um monte deles em minha prateleira. Aos poucos fui me escorando na mesa grande e fria de mármore, deixei meus olhos caírem sobre aquelas obras de arte - eu amava livros. De repente me vi obrigada a desviar os olhos, movida por um ruído muito próximo de mim.
- Katy? Katy Alden? É mesmo você?
Droga! A voz continuava grave e rouca. Por um momento pensei em dizer que aquele era o banheiro feminino e portanto ele deveria se retirar, mas a estante cheia de livros me fez recuar.
- Oi, John. - Para onde foi a minha voz?, pensei.
- O que faz aqui ligeirinho?
Recebi o apelido "carinhoso" de ligeirinho por causa das nossas idas à praia durante o namoro. Ele tentava me pegar no colo para jogar no mar, e eu corria o mais rápido possível para que a água salgada não estragasse meu cabelo.
- Bem, o mesmo que você suponho. - Sem sucesso, tentei liberar um sorriso simpático e completei - Meus pêsames.
John ficou pensativo e em seguida mostrou uma fileira de dentes brancos, tentando sorrir - Fiquei feliz em reencontrá-la. - E novamente ficou pensativo.
Senti um cheiro amadeirado e muito forte; aquilo acendeu meu olfato. Logo em seguida percebi a mistura das essências. A madeira pura e genuína da estante, e o frescôr da masculinidade brotando da camisa dele. Eu amava aquele cheiro!
- Voltei há um mês!
- Voltei há um ano. - Repliquei. Ele pareceu atônito - Sabe onde fica o banheiro?
- Na verdade me disseram que era aqui! - Ele riu.
- Então acho que vou procurar... Foi bom te ver. - Eu precisava sair rápido, antes que meu coração amolecesse.
É uma pena que eu tenha lutado tanto por controle, para perder as forças na hora do toque final. Eu realmente pretendia girar a maçaneta e sair daquele cheiro hipnotizante, mas ele me puxou para mais perto, rápido demais, delicado demais. E de repente já estávamos ofegantes por causa da saudade... e do beijo, é claro!
- Eu teria ficado por você. - Ele cochichou.
Dois meses depois eu o convenci a comprar uma estante de madeira para nossa casa.
- Para quê tanta euforia? É só uma estante!
- Eu gosto do cheiro. - Sorri.

2 comentários:

  1. Amei o post, super criativo esse texto.
    Eu amo cheiro de livros novos, esse seria o meu cheiro ideal rsrs.
    http://plumasepaets.blogspot.com.br/

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    1. Somos duas Bia, sempre que chega um livro novo aqui em casa, eu fico sentindo o cheirinho! hahahahaha

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